Trabalhando e ouvindo músicas: minha rotina. Uma playlist para quando estou triste toca no Spotify. "Jesus, meu Deus humano", música de Padre Fábio de Melo começa a tocar. Na hora me vem um arrepio: era a música que mais ouvi quando meu João Miguel se foi.
Lembrar de tudo que aconteceu àquele dia é muito doloroso. É como reviver tudo, mais uma vez. Inclusive com redundância. A vivência àquela época foi tão intensa que já não sabia sentir o que estava passando, tampouco acreditar, mas vivi. Infelizmente.
"...Que conhece a dor de ver partir a quem se ama..."
Ninguém sabe o que senti quando te perdi, meu filho. Ver você já sem vida, foi sem dúvida a maior dor que já senti em toda minha vida. Queria que fosse eu no seu lugar. Você merecia viver, contigo se foi minha esperança, meus planos de ser um bom pai e tantas outras coisas que queria que tivesse acontecido.
A pior lembrança daquele dia foi ter que te carregar nos meus braços, em um caixão. Pequeno e frágil, não queria te deixar ir embora, mas era preciso. Meu filho, meu primogênito. Minha responsabilidade era te levar nos meus braços daquela forma. Alguém, não lembro quem, me pediu pra levá-lo e tirar dos meus braços. Não! Eu que tinha que fazer isso. Era o meu filho, um pedaço de mim que eu tinha que me despedir àquele momento.
Os passos mais difíceis de minha vida foram os que dei contigo nos meus braços enquanto te carregava dentro do cemitério. Paramos por um momento. Aguardávamos que sua madrinha, minha irmã, trouxesse a água benta para te batizar antes de sua partida definitiva. Lembro de tuas mãos e como eu queria segurá-las. Acariciei teu rosto, rezei por ti um Pai-Nosso. Perguntei-me e a Deus por que estávamos passando por tudo aquilo. Não sei se precisava da resposta, apenas precisava externar a pergunta para que aliviasse minha dor um momento. Não consegui nenhum dos dois, nem a resposta nem o alívio. Deixem-me com minha dor.
Enquanto isso sua mãe passava por um pequeno procedimento cirúrgico no hospital. Não viu nada disso que nós dois passamos, meu filho. Não poderia. A maior dor dela foi literalmente o inverso da que passei. Enquanto a minha foi andar contigo nos braços, a dela foi nunca ter te segurado neles. Ela não teve a oportunidade de te segurar e te dar um beijo de despedida, mas a carga emocional dela foi imensamente maior.
Cumpri meu papel de pai e tomei as rédeas da situação. Busquei servir de escudo entre ela e a dor. Toda vez que a visitava no hospital, engolia completamente minha dor e tentava fazê-la feliz. Em vão, mas tentava. Burlava as regras do hospital para estar com ela por mais tempo e não deixá-la sentir tanta dor emocional. Fazia de tudo o possível para tentar diminuir o que ela sentia. Enquanto eu desmoronava por dentro.
Recebia incontáveis ligações durante aquele tempo. Todos os dias. Contava várias vezes a história. Em todas elas me derramava em lágrimas. Até nossa cadela percebeu e se entristeceu também.
Escondo num sorriso às vezes o que sinto, mas quando estou só me vem à mente você. Que nunca conheceu sua casa, a não ser dentro da barriga de sua mãe. Nunca recebeste visitas alegres e brincalhonas com o fato de estares dormindo.
Tu eras incrivelmente parecido comigo, João. Certa vez, tua mãe me perguntou se eu não tinha medo de esquecer teu rosto. Claro que não! Ficaste gravado em minha memória e temos tua imagem em 3D de ultrassonografia. Isso me basta para olhar pro teu rosto quantas vezes Deus me permitir. Só espero, um dia, poder ser apresentado a ti de fato. Dar-te um abraço apertado e nunca mais soltar.
A vida continua, mas eu parei por um bom tempo.
"...Saber que posso confiar em meu Senhor e acreditar que Ele nunca faltará..."
A música mudou e a mensagem, também. Devo confiar em meu Deus, que sabe de todas as coisas. Não sei quais são seus planos para minha vida, mas precisamos de forças e coragem para seguir em frente.
Muitas vezes me falta um sentido para a vida. Lembro-me muito bem como estava "voando" no meu trabalho no período em que te esperava, meu filho. Hoje não consigo um décimo daquela produtividade. Quão dolorosa é essa tua ausência.
Minha maior vontade era ser teu exemplo, te levar para jogar bola, praticar karate, ter aulas de natação, ir para a escola, Ordem DeMolay e Maçonaria (quem sabe?) tudo mais que um pai faria por um filho. Queria que tu olhasses para mim e me visse como um caminho a ser seguido.
Só me resta confiar em Deus, como diz a música. Não só me resta, como é a única fonte de força e o maior dos passos que devo fazer.
Enquanto digito este texto, vem Renato Russo e me diz, em música, que "tudo passa, tudo passará". Será?